LEI 13.281/16 E AS MUDANÇAS NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
Foi publicada dia 05/05/2016 a Lei 13.281/16,
que altera o Código
de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97)
e traz importantes mudanças nas searas administrativa, penal e processual
penal. O art. 7º da Lei dispôs que seus arts. 3º e 4º teriam vigência na data
da publicação, estabelecendo vacância de 180 dias para os arts. 1º, 2º, 5º e
6º.[1]
Primeiramente, entraram em vigor dia 05/05/2016
algumas alterações administrativas:
a) nova infração administrativa de manifestação
ilegal por meio de bloqueio de via pública (art. 253-A do CTB),
com correlata anistia das multas decorrentes das manifestações iniciadas dia
09/11/2015 até 05/05/2016 (art. 4º da Lei 13.281/16);
b) possibilidade de reparar fora do depósito, por
órgão público ou particular, o veículo apreendido (art. 271, § 3º do CTB);
c) autorização para não apenas órgão público, mas
também particular (mediante licitação) realizar serviços de remoção, depósito e
guarda de veículo (art. 271, § 4º do CTB),
com pagamento pelo proprietário diretamente ao contratado ou mediante taxa
instituída em lei (art. 271, §§ 11 e 12 do CTB)
e restituição de cobrança indevida pelo ente público (art. 271, § 13 do CTB);
d) faculdade de notificar o proprietário ausente de
veículo removido por via postal, meio tecnológico ou edital (art. 271, § 6º do CTB);
f) possibilidade de integração dos órgãos do
Sistema Nacional de Trânsito para ampliação e aprimoramento da fiscalização de
trânsito, inclusive por meio do compartilhamento da receita arrecadada com a
cobrança das multas de trânsito (art. 320-A do CTB);
g) faculdade do proprietário ou condutor do veículo
de optar por ser notificado por meio eletrônico (art. 282-A do CTB).
Posteriormente, em 01/11/2016, foi dada vigência para outras transformações
administrativas, sendo as principais:
a) autorização para o órgão municipal fiscalizar o
trânsito em locais públicos e inclusive em edificações privadas de uso
coletivo, neste caso aplicando multas somente para infrações de uso de vagas
reservadas em estacionamentos (art. 24, VI do CTB);
c) estipulação de valores em reais aplicáveis às
infrações administrativas de acordo com a gravidade (leve, média, grave ou
gravíssima), substituindo a obsoleta UFIR (Unidade Fiscal de Referência),
indexador instituído pela Lei 8.383/91
(art. 1º) e empregado como parâmetro para débitos de valores ao Poder Público,
oficialmente extinto pela Medida Provisória 1.973-67/00 (art. 29, § 3º);
d) permissão para retenção dos veículos que saírem
do território nacional sem o prévio pagamento ou o depósito dos valores
correspondentes às infrações de trânsito cometidas e ao ressarcimento de danos
que tiverem causado ao patrimônio público ou de particulares (art. 119, § 2º do CTB);
e) dispensa do porte do Certificado de
Licenciamento Anual quando, no momento da fiscalização, for possível ter acesso
ao sistema informatizado para verificar se o veículo está licenciado (art. 133, parágrafo único do CTB);
f) criação de infração administrativa consistente
na recusa do motorista (quando envolvido em acidente de trânsito ou for alvo de
fiscalização) a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro
procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância
psicoativa (art. 165-A do CTB).
Quanto a este controverso art. 165-A do CTB,
até então a recusa à submissão aos procedimentos para aferir a influência de
álcool ou outra substância psicoativa já implicava as penalidades da infração
administrativa afeta à conduta de dirigir alcoolizado do art. 165 do CTB,
de acordo com a antiga redação do art. 277, § 3º do mesmo diploma, que também teve seu
texto reformulado.
Apesar de a penalidade administrativa ter
continuado semelhante, existe uma utilidade para a mudança. Antes da Lei 13.281/16
a punição era feita com base em uma presunção legal absoluta de que o condutor
estava embriagado, decorrente da mera recusa em fazer o teste, presunção esta
de duvidosa constitucionalidade. Agora o recém criado art. 165-A e a nova
redação do art. 277, § 3º do CTB
sancionam o indivíduo por se recusar a cumprir uma obrigação legal, e não em
virtude de mera presunção.
Todavia, essa artimanha não elimina a polêmica
sobre a constitucionalidade do dispositivo. Isso porque o art. 8.2, g, da
Convenção Americana de Direitos Humanos[2] assegura o direito da pessoa de “não
ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. De um lado,
alguns defendem que esse dispositivo seria inconstitucional por punir
administrativamente o motorista pelo exercício de um direito a não se
autoincriminar. Lado diverso, outros sustentam que a regra é constitucional e
que pode perfeitamente o Estado sancionar na esfera administrativa aquele que
se omite face a uma legítima determinação fiscalizatória estatal (tal como
ocorre também no âmbito tributário), dividindo-se essa corrente em duas
subcorrentes, conforme a argumentação utilizada: a) o nemo tenetur se
detegere se restringe à esfera criminal, o que se depreende da própria
expressão utilizada pelo texto legal (pessoa acusada de delito tem direito),
portanto o sujeito pode ser obrigado a produzir prova em seu desfavor no
campo administrativo; b) tanto na seara administrativa quanto na
criminal o indivíduo não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, mas no
âmbito administrativo, como não se aplica a regra probatória derivada do
princípio da presunção de inocência, a recusa do agente em se submeter ao exame
pode ser interpretada em seu prejuízo e acarretar a inversão do ônus da prova,
resultando em sanção administrativa – posição que adotamos.[3]
Obviamente, mesmo para os defensores da
constitucionalidade da infração administrativa, a mera recusa do motorista em
se submeter a teste, exame clínico ou perícia não pode caracterizar infração
criminal.[4] Para a configuração do crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB),
reclama-se forma de verificação adicional que não dependa do comportamento do
agente, tal como vídeo ou prova testemunhal (art. 306, § 2º do CTB).
No campo criminal, dentro desse conjunto de
mudanças da Lei 13.281/16
que entram em vigor, há duas de maior relevância:
a) obrigatoriedade de a pena restritiva de direitos
eventualmente imposta pelo juiz ser de prestação de serviços à comunidade ou a
entidades públicas, que desempenhem atividades afetas ao resgate, atendimento e
recuperação de vítimas de acidentes automobilísticos (art. 312-A do CTB);
b) revogação da famigerada pseudoqualificadora
do homicídio culposo (art. 302, § 2º do CTB,
introduzida pela Lei 12.971/14),
[5] cujos desdobramentos serão explicados a seguir.
O mencionado arremedo de circunstância
qualificadora veiculava em seu preceito secundário pena de reclusão ao invés da
detenção cominada ao homicídio culposo simples do caput do art. 302 do CTB,
e mantinha, contudo, o mesmo patamar de pena (de 2 a 4 anos).[6] O incremento
da sanção penal da qualificadora era irrisório, pois:
Como se sabe, a teor do art. 33 do CP, a diferença entre a detenção e reclusão limita-se à
determinação do regime inicial do cumprimento de pena. Esse detalhe perde
relevância ao considerarmos que o condenado não reincidente cuja pena seja
igual ou inferior a 4 anos poderá desde o início cumpri-la em regime aberto
(art. 33, § 2º, c do CP). Ademais, a previsão de pena de reclusão não impede
que o juiz promova a substituição por penas restritivas de direitos, que pode
ocorrer independentemente da quantidade da pena nos crimes culposos (art. 44, I, do CP).[7]
Como se não bastasse, a pseudoqualificadora
tipificava conduta semelhante à qualificadora do racha (art. 308, § 2º do CTB
- apenada com 5 a 10 anos de reclusão), criando situação teratológica de
conflito aparente de leis penais dentro do mesmo documento legal. Agora a
barbeiragem legislativa é desfeita, pois a morte culposa decorrente de racha
doloso não tem mais como ser encaixada no revogado § 2º do art. 302 do CTB.
De outro lado, no que tange aos acidentes com
vítimas fatais causados por motoristas embriagados, a retirada da qualificadora
do § 2º do art. 302 do CTB
reacende o debate quanto à possibilidade de concurso entre os delitos de
homicídio culposo de trânsito e embriaguez ao volante. Há quem defenda essa
possibilidade, aberta quando a Lei 11.705/08
revogou a majorante de homicídio praticado por condutor embriagado (art. 302, § 1º, V do CTB),
permitindo o concurso de crimes ante a inexistência de causa de aumento de pena
específica. Lado outro, parcela considerável da doutrina e jurisprudência
repele o concurso de crimes, em razão da absorção do crime de perigo pelo crime
de dano, já que, pelo princípio da subsidiariedade, não se admite a punição de
crime de perigo, existente para evitar a concretização do delito de dano,
quando o dano já se efetivou.[8]
Outra discussão que o legislador não solucionou é a
polêmica acerca da aplicação irrefletida do dolo eventual para os crimes de
trânsito cometidos por motoristas embriagados, com vítimas fatais ou feridas.
Devem perdurar as discussões e as pressões por interpretações distorcidas
envolvendo a configuração de dolo eventual em detrimento da culpa consciente,
distanciando-se do tratamento legal mais adequado há muito aguardado.
Importa frisar que, para a caracterização do dolo
eventual, exige-se que as circunstâncias do caso concreto denotem que houve
representação e aceitação do resultado pelo agente e, sobretudo, que ele
demonstrou indiferença às eventuais consequências de sua atitude, com total
desapreço ao bem jurídico tutelado como sua própria vida e a de terceiros.[9] A
modalidade culposa constitui a regra, na espécie de culpa consciente, na qual o
sujeito prevê a possibilidade do resultado danoso, porém supõe que poderá
evitá-lo com sua habilidade.[10]
Não disciplinada a questão de modo satisfatório, a
cada acidente de trânsito que gere repercussão midiática, os setores
sensacionalistas, atentos aos índices de audiência, contudo carentes de aptidão
técnico-jurídica e descompromissados com a atuação estatal legalista,
continuarão a teimar pela banalização do instituto do dolo eventual, com a
pretensão de imputá-lo como se regra fosse.
Malgrado as sucessivas reformas realizadas no CTB,
as controvérsias que em torno dele gravitam não findam.[11] As falhas do Poder
Legislativo saltam aos olhos: (a) não insere qualificadoras decentes para os
delitos de dano de homicídio e lesão corporal de trânsito resultantes de
embriaguez ou de racha, (b) olvida-se de ajustar a sanção da lesão
corporal de trânsito conforme o grau da ofensa, e (c) insiste em incongruentes
figuras qualificadas em crimes de perigo como no caso do racha do qual
resulte morte ou ferimentos graves, ignorando a lógica jurídica e o princípio
da subsidiariedade. Não é exagero concluir que o CTB
é uma colcha de retalhos mal acabada.
[1] A contagem do prazo para entrada em vigor de
leis com período de vacância inclui a data da publicação (05/05/2016) e o
último dia do prazo (31/10/2016), entrando em vigor no dia subsequente à
consumação do lapso temporal (art. 8º,
§ 1º da Lei Complementar 95/98).
[2] O Pacto de São José da Costa Rica foi
incorporado ao ordenamento brasileiro pelo Decreto 678/92.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo
penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 80.
[4] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Atualizações no Código
de Trânsito Brasileiro (Lei 13.281/16).
Revista Jus Navigandi, Teresina, maio 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/49084 >. Acesso em: 10
out. 2016.
[6] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SANNINI
NETO, Francisco. “Barbeiragens” nos crimes de trânsito entram em vigor. Revista
Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4238, 7 fev. 2015. Disponível em:. Acesso
em: 10 out. 2016.
[7] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Código
de Trânsito atinge a maioridade com velhos problemas e novas perspectivas.
Revista Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-22/código-trânsito-atinge-maioridade-velhos-problemas-novas-perspe....
Acesso em: 10 out. 2016.
[8] Por todos: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis
penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010,
p. 1253.
[9] STF, HC 127.774, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ
01/12/2015.
[10] SUMARIVA, Paulo. Direito penal: parte geral.
Niterói, RJ: Impetus, 2016, p.112.
[11] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Código
de Trânsito atinge a maioridade com velhos problemas e novas perspectivas.
Revista Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em:. Acesso em: 10 out. 2016.
Referências
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Atualizações no Código
de Trânsito Brasileiro (Lei 13.281/16).
Revista Jus Navigandi, Teresina, maio 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/49084>. Acesso
em: 10 out. 2016.
CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Código de
Trânsito atinge a maioridade com velhos problemas e novas perspectivas. Revista
Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-22/código-trânsito-atinge-maioridade-velhos-problemas-novas-perspe...
>. Acesso em: 10 out. 2016.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo
penal. Salvador: Juspodivm, 2015.
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SANNINI
NETO, Francisco. “Barbeiragens” nos crimes de trânsito entram em vigor. Revista
Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4238, 7 fev. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/33392>.
Acesso em: 10 out. 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e
processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SUMARIVA, Paulo. Direito penal: parte geral.
Niterói, RJ: Impetus, 2016.
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