Sobre a relação (ou o grau de relação)
entre o fato típico e a ilicitude formaram-se várias correntes doutrinárias,
com repercussões práticas no âmbito processual, especialmente, na questão do
ônus da prova e do princípio do in
dubio pro reo . Dentre as
teorias referidas podemos destacar:
a) Teoria da autonomia ou absoluta
independência pela qual a tipicidade não tem qualquer relação com a ilicitude,
de tal sorte que ocorrido o fato típico, não se pode afirmar que ele é
presumidamente ilícito, ainda que seja uma presunção relativa (isso ocorreu no
tempo do causalismo e, sobretudo, na construção de Beling, em 1906);
b) Teoria da indiciariedade ou da
"ratio cognoscendi "
pela qual se há fato típico, presume-se, relativamente, que ele é ilícito; o
fato típico é o indício da ilicitude (Mayer, 1915), que deve ser afastada
mediante prova em contrário, a cargo (leia-se ônus) da defesa. Ao contrário da
primeira corrente, não há aqui uma absoluta independência entre esses dois
substratos do crime, mas uma relativa interdependência;
c) Teoria da absoluta dependência ou
"ratio essendi ":
cria o conceito de tipo total do injusto, levando a ilicitude para o campo da
tipicidade. Em outras palavras, a ilicitude é a essência da tipicidade, numa
absoluta relação de dependência entre esses elementos do delito. Não havendo
ilicitude, não há fato típico (Mezger, 1930);
d) Teoria dos elementos negativos do
tipo: tem o mesmo resultado prático da teoria anterior, embora com ela não se
confunda (como, aliás, faz parcela da doutrina), porque construída sob bases
diferentes. Por essa teoria, o tipo penal é composto de elementos positivos ou
expressos (que são as clássicas elementares do tipo penal) mais elementos
negativos ou implícitos do tipo (causas excludentes de ilicitude). Para que o
fato seja típico os elementos negativos - excludentes de ilicitude - não podem
existir. Aqui também há uma absoluta relação de dependência entre fato típico e
ilícito, um pressupondo a existência do outro (Merkel etc.).
Pois bem. No Brasil, em que pesem
entendimentos em contrário, a doutrina e a jurisprudência majoritárias ainda se
inclinam pela segunda das teorias apontadas, qual seja, a teoria da
indiciariedade ou da "ratio cognoscendi " (que foi ratificada,
posteriormente por Welzel). Em termos práticos, significa afirmar que ocorrido
o fato típico, ele é presumidamente ilícito (presunção relativa). Por essa
teoria não é ônus da acusação provar a inexistência de causa excludente de
ilicitude, mas tão somente que o fato é típico. Cumpre à defesa provar a
existência da descriminante e, portanto, a licitude do fato típico e,
consequentemente, a inexistência de crime.
O raciocínio doutrinário até aqui
referido parece correto e adequado à teoria da indiciariedade. Mas no campo
processual, essa teoria da "ratio cognoscendi" deve ser analisada à
luz do princípio do estado de inocência e de seu corolário principal, o
princípio "in dubio pro reo ".
Isso significa dizer que para ser absolvido o acusado não precisa provar a
existência da excludente de ilicitude, mas tão somente demonstrar a
probabilidade da ocorrência da causa justificante.
Na
precisa lição do saudoso Borges da Rosa, a acusação tem o ônus de apresentar
provas de certeza, mas a defesa tem o ônus de apresentar apenas provas de
probabilidade, de verossimilhança, de credibilidade, que causem dúvida (dúvida
razoável) ao juiz, justamente porque tem a seu favor o axioma do "in
dubio pro reo " [1 ], intimamente ligado à
dignidade da pessoa humana, a impedir condenações de pessoas inocentes. No
dizer de Vicente Greco Filho, o ônus da defesa é um ônus diminuído, mitigado. O
ônus da defesa tem "tamanho" menor do que o ônus da acusação.
Com efeito, ao criar dúvida no juiz
sobre a existência ou não da descriminante, a defesa já cumpriu integralmente
seu ônus probatório, é dizer, já afastou a certeza necessária sobre a ilicitude
do comportamento típico que deve haver para que se possa condenar. Dito de
outra forma, se o juiz, com as provas apresentadas na instrução pela defesa,
estiver ao final da demanda em dúvida sobre a existência ou não da descriminante,
isso significa que a defesa cumpriu seu ônus de provar a excludente, mediante
um juízo de probabilidade, suficiente para afastar a presunção da ilicitude do
fato típico imposta pela teoria da ratio
cognoscendi .
A
propósito, o saudoso Mirabete, ao analisar a questão do ônus da prova,
acertadamente coloca que "com a adesão do Brasil à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), conforme Decreto n. 678 , de 6-11-92, vige no país a regra de
que 'toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua
inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa (art. 8º , 2 , da
Convenção). Dessa forma, atribuída à acusação o dever de provar a culpa do réu, impõe-se sua absolvição mesmo na
hipótese de restar dúvida quanto à procedência das alegações da defesa " [ 2 ] (destaques nossos).
Realmente,
se a defesa conseguir demonstrar a probabilidade de ter ocorrido uma situação
justificante do fato típico a ensejar dúvida inafastável no julgador, estará
mantido o estado de inocência estabelecido constitucionalmente (art. 5º , LVII da CF) e no Pacto
mencionado, devendo o juiz absolver o acusado. A presunção de ilicitude do fato
típico determinada pela teoria da "ratio cognoscendi " estará afastada e a
constitucional presunção de inocência mantida, equação da qual deverá redundar
a improcedência da demanda penal.
Esse
entendimento se reforça ainda mais com as recentes alterações do Código de Processo Penal . O art. 386 , V , do CPP dispunha que o juiz deveria absolver o
réu quando existisse circunstância excludente do crime. O atual art. 386 , VI do CPP(inciso alterado pela
Lei 11.690 /2008) dispõe agora que o juiz deve
absolver o acusado quando "existirem circunstâncias que excluam o crime
ou isentem o réu de pena, ou mesmo
se houver fundada dúvida sobre suas existência "(destaque nosso).
Parece-nos absolutamente claro que se a defesa criar para o juiz a dúvida sobre
a existência ou não da excludente de ilicitude terá cumprido integralmente seu
ônus probatório, devendo o juiz absolver o réu por expressa determinação do
art. 386 , inciso VI , parte final, do CPP . Aliás, o raciocínio é válido para
qualquer situação: seja porque o réu fez alguma prova que gerou a dúvida, seja
porque a acusação não afastou de forma inequívoca a dúvida sobre a existência
da excludente. Em qualquer hipótese de dúvida, cabe ao juiz absolver.
É
certo que para a absolvição sumária do acusado, o novo artigo 397 , I , do CPP(com redação
determinada pela Lei 11.719 /08) exige a "existência
manifesta de causa excludente da ilicitude do fato"; mas para a absolvição
após regular instrução, basta, conforme referido, "fundada dúvida sobre a
existência" da causa justificante. Essa sistemática adotada pelas reformas
do Código de Processo Penal , a propósito, é plenamente
justificável. A absolvição sumária enseja um juízo precário de mérito que
equivale a uma quase rejeição da inicial acusatória, sem qualquer
aprofundamento na instrução processual, sem sequer a produção de provas pela
acusação. Somente, portanto, uma evidência sobre a existência da excludente
trazida pela defesa nessa fase inicial do processo pode autorizar,
prematuramente, a absolvição do acusado. Diferentemente se passa ao final da
instrução probatória. Se após o esgotamento de todas as fases possíveis do
procedimento remanescer a dúvida no magistrado sobre a existência ou não de
excludente de ilicitude, isso equivale à falta de provas para condenar, devendo
ser aplicado o princípio "in dubio pro reo "(estampado, expressamente,
também no art. 386 , VI , parte final, do CPP , especificamente quanto às
justificantes e dirimentes).
Não é correto, portanto, afirmar, como
se tem dito, que se o juiz estiver em dúvida se houve ou não, v.g, situação de
legítima defesa, deve condenar o acusado, pois a defesa tinha o ônus de provar
a existência da excludente e não a provou. E se não cumpriu seu ônus não pode
se prevalecer do princípio "in dubio pro reo ".
Se
a defesa provar a existência da excludente de ilicitude é óbvio que a
absolvição se impõe; mas se demonstrar a probabilidade da excludente de
ilicitude ter ocorrido, ensejando dúvida no julgador, isso já basta para a
improcedência da ação penal. Essa nos parece a equação acertada entre a teoria
penal da "ratio cognoscendi "e
a questão do ônus probatório quanto às excludentes de ilicitude e a mais
adequada ao constitucional princípio do estado de inocência e de seu
consectário lógico, o princípio"in dubio pro reo " [ 3 ].
Tudo quanto acaba de ser dito vale
integralmente para a decisão dos jurados (no Tribunal do Júri). Em caso de
dúvida, impõe-se a absolvição do réu.
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